Chivale & Thovela

Renegociação De Contratos Do Sector Extractivo Em Moçambique Vs. Pacta Sunt Servanda

1.Introdução

No dia 15 de Janeiro do corrente ano, o País inaugurou um novo ciclo governativo com a investidura de Daniel Francisco Chapo como Presidente da República. De entre outras, o Presidente da República ora recém-empossado, definiu como prioridade do novo Executivo o aumento dos benefícios dos projectos de recursos naturais, nomeadamente mineração e petróleo e gás.

Recentemente, com fundamento na prossecução do interesse nacional, o Presidente da República abordou publicamente a necessidade de se renegociarem determinados contratos assinados pelo Governo de Moçambique no âmbito dos megaprojectos, e destacou especialmente os contratos celebrados com as multinacionais Kenmare (projecto de areias pesadas de Moma) e SASOL (projecto de gás natural de Temane), ambos celebrados no longínquo ano de 2002. O Chefe de Estado asseverou que já decorria o processo de renegociação com as contrapartes, e colocou uma tónica especial em questões sociais e conteúdo local como motes da revisao contratual.

Pretendemos, com as linhas abaixo, discutir em brevíssimas notas algumas questões técnico-jurídicos que normalmente circundam este tipo de processos, e demonstrar até que ponto a acção presidencial acima aludida encontra respaldo nas normas e princípios que norteiam os contratos.

2. Breve contextualização histórica

Na alvorada da indústria extractiva em Moçambique, nos primórdios da década de 2000, o Governo do dia enfrentou desafios significativos na negociação de contratos desse sector devido à (i) fraca de capacidade técnica, (ii) falta de conhecimento especializado e (iii) e falta de legislação robusta para garantir acordos justos e vantajosos para o País. Esses factores colocavam o Executivo em desvantagem nas negociações com as empresas multinacionais, que geralmente possuem recursos financeiros, técnicos e jurídicos ostensivamente superiores.

A Lei de Minas (Lei n° 2/86, de 16 de Abril) e a Lei dos Petróleos (Lei n.º 3/81, de 3 de Outubro) em vigor à data da negociação dos primeiros contratos da indústria extractiva em Moçambique, eram instrumentos amplamente desfasados da realidade e incapazes de responder às principais questões típicas da indústria extractiva impostas pelo advento dos megaprojectos. Aliás, na altura o Governo, ciente dessa fragilidade, concebeu novos pacotes legislativos para a actividade mineira e hidrocarbonetos, aprovados, respectivamente, pela Lei n.º 14/2002, de 26 de Junho, e pela Lei n.º 3/2001, de 21 de Fevereiro, que se destinavam a fazer face ao chamado boom da indústria extractiva em Moçambique. Igualmente, era bastante incipiente a experiência dos quadros do Governo na negociação de contratos típicos do sector da indústria extrativa, e mesmo as firmas de advogados moçambicanas na altura não tinham recursos humanos devidamente preparados para asissistir ao Governo naquelas matérias.

Portanto, os primeiros contratos no sector, sobretudo os da Highland African Mining Company (2000) – projecto de tantalite, na Zambézia; Kenmare Kenmare Moma Processing (Mauritius) Limited (2002) – projecto de areias pesadas, em Nampula; SASOL Moçambique (2002) – projecto de exploração de gás natural em Temane, Inhambane, foram todos celebrados num contexto em que nos faltavam, como país, a devida capacidade técnica, conhecimento especializado e legislação moderna e robusta. Isto significa, a nosso ver, que poderá haver questões importantes, que beneficiariam os moçambicanos, que foram ingenuamente olvidadas nesses contratos, e também questões que, usurariamente, as multinacionais possam ter incluido nas redacções que, de alguma forma, extravasam os limites razoáveis do que é tipicamente estipulado nesses acordos, como é o caso dos benefícios fiscais excessivos – na opinião de alguns especialistas.

3. Da renegociação e pacta sunt servanda

Regra geral, os contratos mineiros e de hidrocarbonetos contêm cláusulas de estabilidade (sobretudo a estabilidade fiscal), as quais constituem, na verdade, um mecanismo de protecção ao investimento do titular do projecto face à dinâmica social que dita a evolução do normativo fiscal.

A renegociação, normalmente, envolve alteração das cláusulas contratuais originais, para ajustar condições económicas, prazos ou outras disposições pertinentes. Ora, a renegociação pode (às vezes aparentemente) entrar em colisão com o princípio “pacta sunt servanda” porquanto a alteração das cláusulas implica o incumprimento parcial ou total do contrato original. Este princípio, sacrossanto no direito contratual, e previsto no artigo 401, n° 1 do Código Civil, estabelece que os contratos devem ser cumpridos integralmente, como foram acordados pelas partes. Ele garante a segurança jurídica nas relações contratuais.

Importa referir que o Estado tem poderes soberanos para explorar os recursos naturais, sujeito às suas leis e políticas. Isto pode incluir a promulgação de novas leis ou a alteração das leis existentes, desde que a alteração da lei respeite os direitos adquiridos do investidor.

Nos casos aludidos pelo Presidente da República, parece que o Governo tenciona negociar um regime mais benéfico para o interesse nacional, em virtude do termo de validade dos contratos retromencionados. Portanto, não se trata precisamente de uma renegociação que perturbe a execução e estabilidade normal dos contratos, ou seja, o Governo não está a violar o ditame pacta sunt servanda que norteia os contratos.

Na verdade, os contratos retromencionados têm validade de 25 anos renováveis mediante acordo das partes, e parece fazer sentido que ao fim dum ciclo de vigência contratual as partes voltem a sentar-se à mesa de negociações para rever algumas cláusulas que possam eventualmente estar desajustadas da realidade e necessidades actuais das partes, e acordar um novo regime que seja satisfatório  à luz do contexto actual. Portanto, no caso vertente, trata-se de uma renegociação inexoravelmente imposta pela necessidade de renovação dos contratos, uma renovação prevista pelos próprios contratos – pelo que, a nosso ver, não há violação real do princípio pacta sunt servanda.

4. Conclusão

A evolução legislativa do sector, que resultou na modernização do pacote legislativo mineiro e de hidrocarbonetos (aprovação da Leis n.°s 20/2024 e 21/2014, ambas de 18 de Agosto), a formação de quadros do MIREME e da Autoridade Tributária, em matérias relevantes de recursos naturais, denota a preocupação do Governo em aprimorar a sua postura patriótica face à demanda dos projectos do sector extrativo.

Ao longo das duas décadas de execução desses contratos, o Estado agiu sempre em estrita observância das cláusulas de estabilidade acordadas, sendo que nos parece razoável que, ao fim dum ciclo de vigência destes contratos, e em nome do interesse nacional, o Governo deva inevitavelmente reavaliar de forma lúcida e responsável estes acordos, tendo em conta a maximização dos ganhos/benefícios para o povo moçambicano, legítimo proprietário dos recursos naturais que jazem no solo pátrio.

Obviamente que a renegociação dos contratos deve ser feita de forma consciente, de modo a garantir o equilíbrio económico das partes.

 

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